A pandemia silenciosa – texto escrito em abril de 2020

Em 1928 no Hospital Santa Maria de Londres, o biólogo, botânico, médico, microbiologista e farmacologista Alexander Fleming notou pela primeira que a bactéria patogênica Staphylococcus era inibida pelo fungo Penicillium notatum. Esta observação conduziu à descoberta da penicilina.

Em 1941 começou a produção de penicilina em Londres, transferida para os EUA por causa da guerra. As empresas Merck, Squibb e Pfizer foram as primeiras a produzir penicilina, que influenciou diretamente no resultado da 2ª Guerra Mundial. Howard Florey, Ernst Chain e Alexander Fleming ganharam o Prêmio Nobel de Medicina em 1945 por suas descobertas.

Pouco tempo depois outros antibióticos foram também descobertos, como estreptomicina, cefalosporinas, vancomicina, meticilina, ampicilina e muitos outros. Até 40 anos atrás. Desde então, muito poucos novos antibióticos surgiram no mercado farmacêutico. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que entre 2003 e 2013 foram investidos 38 bilhões de dólares na pesquisa e desenvolvimento de novos fármacos. Destes, menos de 130 milhões de dólares foram investidos anualmente na pesquisa de novos antibióticos no mesmo período. Este montante é menor do que o orçamento anual da FAPESP ou do CNPq.

Quase ao mesmo tempo da descoberta da penicilina se observou que bactérias patogênicas se tornam resistentes aos antibióticos. Ou seja, os antibióticos aos poucos perdem a capacidade de matar ou inibir o crescimento de micro-organismos que causam doenças. Hoje, todas as principais linhagens de bactérias e fungos patogênicos para o homem e animais já apresentam resistência a antibióticos, em maior ou menor grau. Todas.

O resultado do não-desenvolvimento de novos antibióticos, e da má utilização dos mesmos, levou a uma pandemia silenciosa, da qual pouco se fala. Atualmente mais de 1 milhão de pessoas morrem por ano em decorrência da resistência de patógenos aos antibióticos. Para se ter uma ideia, a malária causa a metade desse número de mortes, por ano.

Se nada for feito, a OMS estima que este número de mortes chegue a 10 milhões de pessoas por ano em 2050, com um prejuízo econômico global de 100 trilhões de dólares.

A pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, causador de COVID-19, já é considerada a maior desgraça de saúde humana no século 21. Mas, será que é mesmo?

Em 2016, a OMS lançou o Plano de Ação Global sobre a Resistência Antimicrobiana, com 5 objetivos: melhorar o conhecimento e entendimento profissional e de tomadores de decisões sobre a resistência antimicrobiana; melhorar a vigilância e a pesquisa sobre a resistência antimicrobiana; reduzir o grau de infecções microbianas no mundo todo; promover o uso racional de antibióticos no tratamento de humanos e animais; aumentar o investimento no desenvolvimento de novos antibióticos, diagnósticos e vacinas.

Documentos da OMS disponíveis on-line mostram que 4 anos depois tais diretrizes ainda se encontram em implementação. Infelizmente a resistência bacteriana não diminuiu nesse período.

Embora a pandemia do vírus SARS-CoV-2 esteja em total evidência, o que é absolutamente necessário, não se pode esquecer da pandemia silenciosa decorrente da resistência aos antibióticos. Caso governos não tomem providências urgentes, as consequências de tal negligência podem ser devastadoras. A resistência aos antibióticos afeta não somente doentes infectados. Antibióticos são necessários para realizar cirurgias de rotina, como cesarianas, por exemplo.

No Brasil, medidas para enfrentar o problema da resistência de patógenos aos antibióticos incluem a Normativa da Anvisa RDC nº 20/2011, que exige que antibióticos sejam vendidos somente com prescrição médica, e o estabelecimento do Plano de Ação Nacional de Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos no Âmbito da Saúde Única, de 2018, de acordo com as diretrizes da OMS de 2016. Dentre outros objetivos, foi incluído “Instituir a prevenção e controle da resistência antimicrobiana como política de estado.”

A pandemia silenciosa que resulta da resistência antimicrobiana não pode ser minimizada. O tempo para a implementação de políticas educacionais, de pesquisa, de saúde, econômicas e legais nunca é curto, e tais políticas necessitam de planejamento, organização e ação imediatos.

Ninguém imagina termos que enfrentar em breve outra pandemia, similar à COVID-19.

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Em 7 de julho de 2022, o seguinte texto foi publicado no site da Harvard Public Health: