Tetrodotoxina
A seguir, a estrutura da tetrodotoxina (TTX), uma de minhas favoritas. A TTX foi originalmente isolada de baiacús, peixes da família Tetraodontidae. Para quem nunca os viu, estes peixes “inflam” como um balão quando se sentem ameaçados, apresentando protuberâncias que parecem espinhos. Além disso, acumulam TTX em suas vísceras, e por vezes na sua pele. Por “inflarem”, são conhecidos em inglês por “puffer fish”. Em japonês, fugu. Os apreciadores garantem que a carne de baiacús é extremamente saborosa, porém o seu preparo requer uma limpeza extremamente cuidadosa para não contaminar a carne com TTX, a qual, em doses muito pequenas é mortal.
A TTX foi originalmente isolada na forma bruta em 1909 por Tahara. A primeira forma pura da TTX foi obtida a partir do extrato de 60 kg de ovários do peixe Fugu rubripens por precipitação com formaldeído, acetato de chumbo, hidróxido de amônio e ácido acético. A toxina ainda impura foi cristalizada com ácido pícrico, picrato de mercúrio, fenilhidrazina e ácido picrolônico. O produto cristalino foi purificado por cromatografia em coluna de alumina, e re-cristalização em MeOH/água. Desta maneira foi possível se obter 13 mg de TTX pura. Este método foi desenvolvido em 1950 por Yokoo. Todavia, muitas outras metodologias foram posteriormente desenvolvidas, utilizando principalmente cromatografia de permeação em BIOGEL P2 (um gel de poliacrilamida), cromatografia em resinas de troca iônica e purificação por HPLC em colunas de troca iônica. Para os interessados, uma revisão histórica sobre os primeiros métodos de isolamento de TTX pode ser encontrada no livro “Advances in Natural Products Chemistry: Extraction and Isolation of Biologically Active Compounds” (editado por S. Natori, N. Ikekawa, e M. Suzuki), Wiley, New York, 1981, p. 511-524 (este livro está disponível na biblioteca do IQ-UNICAMP).
Mais fascinante do que o isolamento de um composto tão polar sem a ajuda de técnicas cromatográficas foi sua determinação estrutural, realizada sem a utilização de ressonância magnética nuclear (RMN) ou de espectrometria de massas (EM). A estrutura da TTX foi elucidada principalmente por métodos de degradação química e análises por ultravioleta e infravermelho, tendo sido confirmada por análise por difração de raios X. O mais interessante é o fato de que 4 grupos de pesquisa apresentaram, de maneira simultânea e independente, a estrutura da TTX no mesmo simpósio de produtos naturais da IUPAC, realizado em 1964 em Kyoto, no Japão: os grupos de Bob Woodward (Pure Appl. Chem., 1964, 9, 49; J. Am. Chem. Soc., 1964, 86, 5030); K. Tsuda (Chem. Pharm. Bull., 1964, 12, 642; idem, ibidem, 1964, 12, 1257), Mosher (Science, 1964, 144, 1100) e Goto (Tetrahedron, 1965, 21, 2059). Subsequentemente, mais de 20 derivados da TTX foram isolados das mais diversas fontes: salamandras, sapos, polvos, caranguejos, algas, além de muitos outros, sendo que mais recentemente se descobriu que a verdadeira origem da TTX é bacteriana. Muitas revisões foram escritas sobre a TTX. Uma particularmente interessante foi publicada por John Daly no Journal of Natural Products (2004, 67, 1211-1215). Ainda não se conhece a origem biossintética da TTX.
A atividade biológica da TTX é como bloqueadora do fluxo de íons sódio (Na+) em células nervosas, levando à morte por parada respiratória. Por isso mesmo, a TTX é amplamente utilizada como ferramenta bioquímica no estudo de processos de transmissão nervosa, e derivados fluorescentes da TTX foram utilizados para se estabelecer a estrutura tridimensional dos canais de sódio em membranas dos neurônios (Ren et al., Science, 2001, 294, 2372-2375).
A primeira síntese total (racêmica) da TTX foi realizada pelo grupo de Yoshito Kishi em 1972 (J. Am. Chem. Soc., 1972, 94, 9219-9221). Após esta síntese, a segunda síntese da TTX, já na sua forma enantiomericamente pura, foi realizada por dois grupos. A síntese de Isobe levou mais de 20 anos para ser finalizada (J. Am. Chem. Soc., 2003, 125, 8798-8805). Já a síntese de DuBois, menos de 3 anos (J. Am. Chem. Soc., 2003, 125, 11510-11511).
Esta molécula fascinante é uma das centenas de milhares que constituem a química dos organismos vivos.